Despedidas e lutos em tempos de pandemia Estamos vivendo tempos difíceis e inéditos (para muitas pessoas). Estar em meio a uma pandemia como a atual é lidar com o inesperado, com a angústia e ansiedade que se multiplicam em nossas mentes e nos levam a sentir diferentes emoções. Uma das mais relevantes aqui é o …
Despedidas e lutos em tempos de pandemia
Estamos vivendo tempos difíceis e inéditos (para muitas pessoas). Estar em meio a uma pandemia como a atual é lidar com o inesperado, com a angústia e ansiedade que se multiplicam em nossas mentes e nos levam a sentir diferentes emoções.
Uma das mais relevantes aqui é o medo de morrer. Os noticiários constantemente evidenciam que a mortalidade pelo COVID-19 é baixa, o que significa que mesmo que muitas pessoas sejam contaminadas, apenas algumas irão falecer.
Essa pode ser considerada uma boa notícia em termos epidemiológicos, porque quando levamos em consideração a experiência de perder um ente querido, a perda será sempre absoluta. Quando as mortes deixam de ser números e se tornam nomes, conhecidos e próximos, o impacto das porcentagens deixam de valer.
Ainda sabemos que muitos desses pacientes serão tratados em unidades de terapia intensiva, recursos avançados para esse quadro que é muito grave, e, consequentemente, muitos irão morrer nessas unidades. Para o paciente, isso pode ser devastador, passar os últimos momentos isolado, sem visitas, longe daqueles a quem se ama. E para os que ficam, sabemos que essas possíveis despedidas, os rituais, influenciam no processo de luto que se seguirá.
Por esses dias, recebi no consultório uma paciente que perdeu seu filho, a causa da morte não estava ligada ao COVID-19, porém devido aos protocolos de prevenção, o velório e enterro ficaram sob as mesmas ordens e restrições adotadas em casos ligados ao novo coronavírus. Ela me relatou, com muita emoção, que o velório decorreu em apenas duas horas, podiam estar presentes apenas 10 pessoas, que se revezavam para entrar no espaço. Disse ainda que nem as velas que ela levou ficavam acesas porque haviam diversos ventiladores ligados para deixar o ambiente arejado.
Todas essas medidas são justificáveis e plausíveis quando pensamos na facilidade com que o novo coronavírus é transmitido, porém, quais os impactos decorrentes desse processo de luto com um ritual de despedida limitado e restrito? As medidas tomadas são por tempo determinado e provisório, mas para quem perdeu um ente querido por esses tempos, as marcas emocionais poderão ser definitivas.
Para que esses impactos sejam amenizados, os serviços de saúde estão adotando uma série de medidas como visitas virtuais durante a internação do paciente – o que pode possibilitar a presença mesmo em meio ao isolamento –, acolhimento, comunicação constante e outras estratégias. São maneiras de transformar esse momento de tamanha angústia em um momento em que o paciente e a família não se sintam desamparados. Sabemos que quando o processo de adoecimento ocorre desta forma, maiores são as chances de um luto saudável.
De toda forma, é imprescindível entender que cada paciente será único, cada vínculo entre familiares é peculiar e não se repete, e somente individualizando essas experiências é que poderemos manter o caráter biográfico de cada caso. Enquanto as autoridades e a mídia – epidemiologicamente justificável – falam em números, precisamos falar em nomes. Precisamos resgatar a importância e adaptar os rituais de despedida, fortalecer os laços familiares que podem ser um apoio emocional, e ainda ofertar escuta ativa e interessada para todos os envolvidos.
Isso nos levará a reconhecer que o luto tira tudo do lugar, que de um momento para o outro, o mundo que conhecemos não é mais familiar. É preciso tempo, compreensão e muita empatia para elaborar um processo de perda. A ausência do ritual de despedida torna o caminho do enlutado muito mais solitário. É um duplo luto o que nos é imposto, para salvar vidas, neste mundo totalmente desconhecido em que passamos a viver a partir da pandemia do novo coronavírus.
Por fim, é oportuno lembrar que cada um vivencia e lida com esses sentimentos de forma diferente. Portanto, pratique o acolhimento com quem compartilha a quarentena com você, isso será essencial. O mundo em que vivemos, de repente, virou do avesso, mas assim como no luto, acreditamos que um dia superaremos essa crise e sairemos, juntos, diferentes do que entramos e inevitavelmente transformados.
Ronny Kurashiki é psicólogo do Valencis Curitiba Hospice.