A psicologia é profissão fundamental para quem precisa de apoio e acompanhamento, em especial diante de um diagnóstico de doença crônica ou incurável. Uma situação como esta nos coloca frente a frente com a vulnerabilidade própria da condição humana e nos leva à constatação de que não somos super-heróis, imortais, ao contrário, somos frágeis, somos mortais. …
A psicologia é profissão fundamental para quem precisa de apoio e acompanhamento, em especial diante de um diagnóstico de doença crônica ou incurável. Uma situação como esta nos coloca frente a frente com a vulnerabilidade própria da condição humana e nos leva à constatação de que não somos super-heróis, imortais, ao contrário, somos frágeis, somos mortais.
Medo, angústia e insegurança não são emoções restritas ao paciente que passa por esses momentos difíceis, também os familiares e até mesmo a própria equipe que cuida dele são afetados por essas emoções. É bom lembrar que com o auxílio de um profissional como o psicólogo é possível passar por tudo isso com uma maior consciência acerca de si mesmo e atingir uma perspectiva de maior compreensão sobre a condição humana.
Para falar sobre a psicologia, o ser e o universo que envolve a profissão, entrevistamos o psicólogo Ronny Kurashiki, do Valencis Curitiba Hospice, primeiro espaço dedicado aos cuidados paliativos da região Sul.
Qual o papel de um psicólogo em cuidados paliativos?
O psicólogo está inserido desde o diagnóstico de uma doença grave até o final de vida do paciente. Tem como objetivo prestar apoio emocional ao paciente e sua família, tanto durante o adoecimento, até os cuidados com o luto. Atuando no ambiente hospitalar, ambulatorial, domiciliar ou ainda hospice, aborda-se questões sobre a história de vida, enfrentamento da doença, rede de apoio, entre outras questões que possa possibilitar ao paciente uma ressignificação da experiência de adoecimento.
Quais são as reações mais comuns dos pacientes ao saberem que a doença é incurável?
É difícil e até perigoso generalizar, mas podemos guiar esse questionamento pela nossa cultura, em que nós somos criados para produzir, conquistar e possuir bens. Essa força de funcionalidade pode nos passar a sensação enganosa de que seremos sempre potentes e saudáveis, que temos todo o tempo a nosso favor. Assim, observo em muitos pacientes que ser diagnosticado com uma doença que não tem cura, é ser confrontado com a realidade nua e crua de nossa finitude, que, afinal, não estaremos sempre por aqui. Essa mensagem pode ser recebida de diversas maneiras em diferentes pacientes, mas uma possibilidade que observo com alguma frequência são pacientes e familiares que colocam sob análise o uso que fizeram do tempo que tinham disponível.
Como psicólogo, como é lidar com a morte todos os dias?
Psicólogos, e toda a equipe de saúde, são também seres humanos. Um dos grandes desafios é justamente cuidar de nossos pares, pessoas como nós que tem sonhos, objetivos, frustrações e conflitos muito parecidos com os nossos. Dessa forma, ao trabalhar com pessoas que estão próximas de sua morte isso nos comunica de forma explicita ou não, sobre a nossa própria finitude. Em cada caso somos confrontados com essas angustias que poderiam muito bem fazer parte da nossa história de vida. Buscando uma forma de não adoecermos ao entrar em contato com tantas histórias de sofrimento, sempre lembro da fala de uma das professoras que tive o prazer de ter em minha formação: “Tudo que acontece com o paciente é de verdade, mas não é comigo”. Nós psicólogos, profissionais de saúde, precisamos encontrar maneiras de conseguirmos nos conectar com o paciente e sua família, compreendendo que aquela não é a nossa família, e a doença que ele tem não nos acomete. Assim, nos protegemos e protegemos o paciente de ser invadido pelas nossas opiniões pessoais.
E como pessoa?
O psicólogo sempre será uma pessoa, carregada de emoções, sentimentos e sua própria história de vida, mesmo quando estiver atendendo. O diferencial é que as opiniões pessoais do psicólogo, com suas crenças, religião e valores, deverão ser trabalhadas de forma a não invadir o espaço do atendimento. Quando nos propomos a atender um paciente ou familiar, estamos nos colocando à disposição de deixar em suspenso toda essa nossa bagagem para que no atendimento emerja os conteúdos vindos daquele que está sendo atendido. Não é que não tenhamos desejos, vontades ou opiniões, mas decidimos abrir mão de exercê-los para que possamos prestar um atendimento ético e centrado na pessoa atendida.
Negar, aceitar, enfim, reconhecer que o fim está próximo. Como é vivenciar isso com os pacientes paliativos?
Por mais que o paciente tenha estado doente durante algum tempo, o que pode se estender a anos em alguns casos, nenhuma experiência que passarmos nos dará a real dimensão do que é morrer. Há um ineditismo nessa experiência que, por essência, só nos permite imaginar, fantasiar e fazer hipóteses sobre ela. Dessa forma, em suma, o trabalho psicológico em relação à finitude da vida é colocar o paciente em movimento psíquico de processar todo esse campo de imaginário que se abre a partir do adoecimento. Instrumentalizá-lo para simbolizar, atribuir significados e encontrar sentido nessa existência que está com seu fim sendo sinalizado. Esta pode ser uma tarefa árdua para muitos pacientes, bem como pode se mostrar um movimento desgastante emocionalmente. Por isso, alguns conseguirão transitar por essa experiência de maneira mais leve, outros terão algumas dificuldades, e ainda tantos não conseguirão nem se aproximar das reflexões que o façam perceber o final da vida. Respeitar o tempo, a capacidade emocional e a disponibilidade de cada um é essencial.
Existe sempre um último desejo?
Não acho que seja possível afirmar que sempre haja um último desejo, pois ao contrário dos filmes, muitos pacientes falecem sem estarem conscientes. Estejam eles adormecidos por uma condição natural da doença grave ou ainda por causa de uma sedação paliativa, não podem tomar decisões ou expressar suas vontades. Por isso que sempre trabalhamos com os pacientes e familiares a importância de conhecermos os direcionamentos que o paciente deseja antes que ele venha a perder a consciência. Assim é possível traçarmos um tratamento que seja guiado e centrado na pessoa e não exclusivamente em padrões técnicos e generalistas. Mas não é menos verdade que nós, enquanto sociedade, temos medo de pensar sobre o final de vida, receamos que isso atraia mais rapidamente a brevidade da vida, e com isso por vezes apenas damos conta de somente ir até conteúdos que abordem o assunto de forma indireta. Por exemplo, é recorrente nos atendimentos os pacientes expressarem o ‘desejo’ de não sofrer, não ter dor, serem cuidados em suas necessidades, mas entendo que isso é nossa obrigação enquanto equipe, e só quando o paciente e sua família estiverem sentindo-se seguros e cuidados é que poderão acessar outras áreas de sua vida e expressar os seus desejos de fato. Assim, tive pacientes que, ao final de sua vida, chamaram algum familiar que não viam há tempos, outros que pediram para permanecer em casa mesmo com o avanço do quadro, já pediram para viajar, comer uma comida específica, se despedir de animais de estimação, entre outros. Controlar os sintomas e valorizar esses direcionamentos dados pelo paciente é tratá-lo com dignidade!
A finitude é o fim mesmo?
Cada pessoa terá uma crença ou religião, e, consequentemente, uma resposta diferente para essa questão. Mas se observarmos esta questão do ponto de vista do legado, a morte não é o fim. Em toda nossa história de vida conhecemos pessoas, nos conectamos, somos marcados por elas e também deixamos marcas, afetamos e somos afetados pelo meio que nos cerca. Assim, nossa existência nesse mundo, do Ocidente ao Oriente, nunca será apagada, seremos para sempre parte da história de um lugar, de uma família, de um esposo, de uma filha, etc. E talvez aqui esteja um dos nossos compromissos existenciais: refletir sobre como queremos continuar aqui quando já não estivermos mais.